quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

a coragem vai ao cabaret

 
 
Tournée (2010), Mathieu Amalric.
 
Depois da Amizade (podem ver o meu contributo aqui), o Caminho Largo renovou-me o convite para participar numa rubrica onde a Coragem foi definida como caleidoscópio temático de uma selecção de 3 filmes e um realizador. As minhas escolhas, essas, encontram-nas ali (clicar).
Nem sempre este tipo de escolhas merece "justificações", muito menos quando o tema é tão amplo - demasiado, em minha modesta opinião - como no caso presente. Perante a amplitude da coisa, decidi ser pragmático e optar por três filmes com muitos (mesmo muitos) pontos de contacto e, mais importante, onde os corajosos (homens, nos três casos)  se - como dizem os brasileiros - "viram" (no sentido de superar as adversidades da vida) no mesmo tipo de espaço (clubes nocturnos, cabarets) e rodeados das mesmas "companhias" (mulheres, álcool, cigarros  e cobradores de dívidas). Mais concretamente, sobre os três filmes que escolhi, reproduzo, abaixo, o que, há uns anos, escrevi sobre dois deles (Ferrara e Amalric) e o porquê de os considerar um excelente ilustrativo do tema proposto (não é por acaso que a palavra "coragem" expressamente lá aparece...), importando acrescentar que essa mesma explicação se estende, na plenitude, ao filme do Cassavetes.
 
Quanto ao realizador eleito, que dizer? Pensei em Godard, Antonioni, no próprio Cassavetes, nos japoneses, no César Monteiro, e mais uns quantos. Acabei por me deter no Pasolini, exemplo da coragem feita homem, porque transversal: no plano pessoal (afirmação, sem rodeios, da sua homossexualidade, num tempo em que isso ainda era uma "excentricidade" de circo), no plano político (comunista numa Itália pós-fascista, "esquerdisticamente" fragmentada e  pré-Berlusconi, com as perseguições que se sabem, culminadas na morte às mãos da direita), no plano estético (um desbravador das fronteiras entre literatura, poesia, cinema, teatro) e, last but no least, no plano cinematográfico (artisticamente selvagem e desprendido de cinematografias "de programa", como Mamma Romma,  a sua primeira longa, logo indicia pelo descolamento sofisticado em relação ao neo-realismo). Enfim, tudo aspectos que Saló ou os 120 dias de Sodoma, que vi recentemente, condensa numa afirmação de singularidade e iconoclastia.
 
 
 
Há um mundo de semelhanças entre o Ray Ruby (Willem Dafoe) de Go Go Tales (2007, Abel Ferrara) e o Joachim Zend (Mathieu Amalric) de Tournée (2010, Mathieu Amalric). De um lado, a mesma paixão, irreverência e obstinação. O optimismo inquebrantável, contra tudo e contra todos (the show must go on), que mexe em tudo por que passa, mesmo quando a tragédia parece estar iminente. Por outro lado, a mesma infantilidade (ambos sonhadores e indomáveis - síndrome "Peter Pan") e solidão (Ray dormindo sozinho no seu escritório enquanto mil coisas acontecem no seu clube; Joachim viajando sozinho de carro pela noite dentro enquanto a sua companhia de new burlesque actua). E, porque não dizê-lo, a mesma decadência e sensação de nostalgia pelos good old days, não só no que ao dinheiro propriamente dito diz respeito (dois businessman falidos), mas também no que toca ao seu percurso dentro do mundo do espectáculo (o clube Ray's Paradise já viveu melhores dias e Joachim, por seu turno, era um tipo famoso em França antes de se chatear com a indústria e se exilar nos EUA).

Mas, ainda mais marcante, é a mesma fragilidade emocional e necessidade de se agarrarem aos seus mais próximos, que não são, note-se, num caso e noutro, a família (como seria habitual), mas sim as pessoas com quem trabalham diariamente. Ray trata as suas go go girls quase como filhas, referindo-se ainda numerosas vezes ao pessoal do Ray's Paradise como uma "grande família", onde todos olham por todos (veja-se a cena excelente em que uma striper lhe diz que está grávida ou aquela outra em que Ray canta sozinho em palco - a canção parece ser, na verdade, dirigida ao clube). Joachim, por sua vez, parece só estar bem quando rodeado das suas strippers, procurando fazer tudo para que se sintam bem, ainda que por isso durma pouco ou nada.
 
Flagrante, também, o espaço em que ambas as personagens se movem: o mundo do espectáculo e, mais concretamente, o mundo do striptease, das mulheres, da carne e da sensualidade. É neste mundo que ambas as personagens se encontram permanentemente à beira do colapso, do fim, embora haja sempre algo que as mantém à tona. Apetece acreditar que esse "algo" não é fruto do acaso ou da fortuna, mas como que uma recompensa pela coragem e determinação de dois seres vertiginosos que correm todos os riscos por amor à arte. E por aqui se vê o grito pela independência - no cinema, mas também na arte, em geral - que é comum a crítica apontar a Amalric e Ferrara por estes dois filmes.

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

excepções


"Excepções" (com Enigma), álbum UniVersos (2012). Virtus.

UniVersos (2012) foi, a anos luz da concorrência, o melhor álbum de hip-hop português de 2012 (e certamente um dos álbuns a eleger num qualquer top 5 de hip-hop português de sempre), assim como - e não preciso de pôr as mãos no fogo para dizer isto - um dos melhores álbuns da música portuguesa desse mesmo ano - di-lo alguém que, apesar de escrever, maioritariamente, sobre música negra e, especialmente, hip-hop, não deixa de escutar outros horizontes sónicos (ainda ontem pensava no quão bela poderia resultar uma colaboração entre a Jean Grae e a Fiona Apple). Sobre esse álbum-cometa, escrevi esta crítica, se bem que, hoje, olhando para ela, sinta que ficou muita - tanta - coisa por dizer.

Bom, o que me interessava mesmo, no entanto, era trazer para aqui "Excepções", talvez a única faixa de UniVersos que, estando disponível no youtube, ainda não constava deste espaço. É uma das minhas pistas preferidas, sobretudo por ser nela que a superlativa abstracção poética das letras de Virtus - bem como de Check e Each, rappers que formam os Enigma, aqui convidados - mais se evidencia, conferindo, como em tanto outras faixas do álbum, um enorme mistério às palavras e ao que elas projectam (sensações físicas, emoções, imagens, visuais e metafóricas, etc.). Sabemos que "Excepções" fala de relações, excepções (para ser redundante...), desilusões, esperanças incipientes, frustrações, avanços e recuos, "dessacralizações" (pais e filhos que não se amam, por exemplo). Sabemos isto, mas, chegados ao fim, a complexidade do que é dito e o polimento da métrica voltam a adensar o nevoeiro e, percebemos então, nada nos resta senão escutar, novamente, cada palavra. E cair no eterno - porque abstracto, precisamente - abismo que elas abrem (preparava-me para escrever "encerram", mas, aqui, a abstracção é uma porta infinita para significados e percepções). Perdi as palavras no meio do fumo e disse "fuma".

terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

heart palpitations do still occur though



 
"U&Me&EveryoneWeKnow", álbum Cake or Death (2011). Jean Grae.

madvillain



Algures em Camden (combinando, como se vê, o cachecol com a armadura).

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

londres



Mais do que as exposições do Paul Klee e do Richard Hamilton, a minha curta estadia em Londres valeu, sobretudo, por uma dúvida e uma certeza: a dúvida de ter visto, da rua, a Stacy Martin a jantar; e a certeza de a Tea Falco (sim, sim, a Tea Falco) ter passado por mim uns dois segundos antes de eu pôr o meu pé (o esquerdo, só pode, tamanho o azar) na camioneta que me levou de volta ao aeroporto para me vir embora. Estava sozinha, bela e decadente como no último Bertolucci: lábios de um vermelho pintadíssimo, gorro gasto, cabelos desgrenhados, olhar - que se cruzou, por acaso, com o meu, e não é delírio - agressivo, postura punk de don't give a shit. Io e te, pensei cá para os meus botões, enquanto alguém atrás de mim na fila já resmungava: "come on, man!".

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

Walsh #7 - Crítica "House by the River" (Recuperados)



House by the River (1950), Fritz Lang.

Como uma reminiscência, voltei ao meu Dezembro languiano em Lisboa e voltei a escrever sobre um filme de Fritz Lang, desta feita House by the River (A Casa À Beira do Rio, 1950), um dos melhores filmes que vi (estreias e não-estreias, em sala e em casa) em 2013 e, também, um dos filmes menos vistos do próprio Lang. Na verdade, vendo bem as coisas, não se tratou de uma reminiscência qualquer; nessa noite, meia hora depois de sair da Cinemateca, estava em casa a rabiscar uma data de apontamentos sobre o filme. É isso que podem encontrar, de modo mais organizado, na minha crítica (clicar).

O “rio” do título, ou, melhor dizendo, as suas águas – com as quais, aliás, o filme abre magistralmente (quase um minuto e meio a planar pelo rio) –, talvez forneçam a chave definidora do filme: “I hate this river”, comenta, angustiadamente, Mrs. Ambrose, a empregada do escritor Stephen Byrne (Louis Hayward), quando repara num animal que passa a boiar no rio defronte da casa. Ao que Stephen, muito placidamente, lhe responde: “It’s people who should be blamed for the filth, not the river” (tudo com um espantalho sinistro no enquadramento do plano). (...) A frase tem um alcance profundíssimo (que, numa primeira impressão, pode não transparecer imediatamente): a visão materialista (no sentido filosófico) de responsabilidade moral que lhe está subjacente – não será por acaso que, num lugarejo americano à beira-rio como aquele (conservador, como se supõe), Deus não é invocado, salvo erro, uma única vez, assim se sublinhando a sua ausência/impotência ante a corrupção moral – pretende significar que a culpa pelo que de mal acontece no mundo reside nos comportamentos humanos, e não no acaso ou num qualquer castigo da mão divina.
(Excerto)


trouxeste chuço?



"Trouxeste chuço", álbum Passeio (2014). Ollgoody's.

Aí está o primeiro videoclip oficial do álbum Passeio (2014), dos Ollgoody's, que serve de ilustração - já que é de banda desenhada que estamos a falar - a "Trouxeste chuço", pequeno conto de um amor a dois que superou a fase da inocência e, maduro, resiste, com chuvas mas também com sóis , ao passar do tempo.

A minha crítica ao álbum, essa, podem lê-la ali ao lado (clicar). It's ooollgoood!

Não menos virtuosa é a canção que encerra com chave de ouro o álbum: «Trouxeste chuço» (para os incautos, chuço significa guarda-chuva) aponta-nos um rumo feliz para o futuro de Zé e Bia, se bem que, como se ouve, “Nem tudo é bom nem mau, nem tudo é mau nem bom” (se nos permitem: “Às vezes um gajo ri, às vezes um gajo chora / Dizem-me isto a toda a hora”, como tão acertadamente resume Blasph em «Nuvens Cinzentas»). Novo momento inspiradíssimo de Logos que a um flow inebriante junta uma métrica de filigrana. Veja-se só este trecho: “Sem medo da / eu quero a / partilha da vida sem que te tire a alegria do caminho de caminhares à chuva / só porque a / tua não é só uma e passou a duas”.

(Excerto)


quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

"I'm a strictly home man myself"



The Roaring Twenties (1939), Raoul Walsh.

Em The Roaring Twenties, a viagem de comboio entre Eddie Bartlett (James Cagney) e Jean (Priscilla Lane) terá o seu desenvolvimento e (anti-)clímax (o termo não é inocente, mas... já lá vamos) na cena da chegada a casa de Jean, nela residindo uma das chaves para decifrar a complexa(da?) personagem de James Cagney. Eddie, no seu habitual cavalheirismo sagaz, prontifica-se (insiste) em acompanhar Jean a casa, casa que ele já conhece dos tempos em que, regressado da guerra, havia ido visitar a mulher  afinal uma adolescente que ainda vive com a mãe   que lhe mandava cartas, desejosa de arrematar, como ela própria o diz, o seu "dream soldier". Eddie, então espantando com a mocidade de Jean, rapidamente desaparece do mapa.

Mas, agora, passados uns anos, Eddie acompanha, dizíamos, Jean, entretanto feita mulher e aspirante a cantora, a casa. Hiper confiante (a "confiança" é um punctum crucis delicado em Eddie, mas... já lá vamos, já lá vamos) e charmoso, Eddie domina todo o encontro perante uma Jean embevecida, naquele que é o único momento, ao longo de todo o filme, em que acreditamos que aquele par pode dar certo, circunstância a que, e trazendo para aqui os movimentos imprimidos pelas máquinas do tempo (ali o carro, aqui o comboio) aludidos por JMG, não será certamente alheio o movimento frontal, em direcção ao futuro (ao amor, à felicidade), do comboio, com os dois (Eddie e Jean) defronte para esse destino, prontos a alcançá-lo, prontos a abraçá-lo.
Já apeados do comboio, Eddie acompanha Jean até à porta de casa, sugerindo (insistindo), de insistência (sugestão) em insistência (sugestão), com uma certa "lata", até, a intenção de entrar com Jean em casa. Neste momento, outra coisa não passa pela cabeça do espectador: Eddie quer entrar para conseguir algo mais, designada e obviamente, levar Jean para a cama. Algo surpreendentemente (estamos a falar do cinema americanos dos anos 30 e da censura legalmente instituída que então o acobertava), Jean, perante a insistência de Eddie (quando Jean lhe sugere ficarem no alpendre, Eddie, recuando até à porta de casa, e depois de argumentar que se constipa com facilidade, diz ser um "strictly home man"), anui, sem dramas, em entrarem para dentro de casa. Suspense.

Quando Jean se prepara para tirar as chaves da carteira e abrir a porta, Eddie faz tombar, sem querer mas ruidosamente, um vaso, pedindo desculpa pelo barulho poder ter acordado a sua mãe. Aliás, a frase exacta – importa transcrevê-la pelo que de insinuante comporta – é: “we got to be careful not to disturb your mother”. Um segundo e Jean já prostrou o olhar no chão, para depois nos dizer (a nós e a Eddie) que a sua mãe passed away há um ano atrás. A seguir a isto, Eddie só lhe perguntará se vive sozinha e, a partir daí, fará conversa de circunstância, até ao momento em que Jean o convida finalmente a entrar, ao que ele recusa. Nunca passará daquela porta e, saberemos mais tarde, nunca entrará verdadeiramente na vida (no coração) de Jean. Como seriam as coisas se, naquela noite, Eddie tivesse acedido ao convite? Teria sido tudo diferente? Talvez sim, provavelmente não.

Esta recusa deixa lastro para, pelo menos, duas leituras diferentes. A primeira, mais imediata e convencional (moralista), é a que vê nessa recusa um acto de amor “puro” (por oposição ao amor carnal, se se admitir que esta oposição faz sentido, que não faz), no sentido em que, afinal, Eddie nunca teria querido levar Jean para cama: se queria entrar sabendo que a mãe de Jean estava em casa (o que impossibilitava, à partida, grandes aventuras), já não o quis (mesmo) sabendo que, afinal, Jean vivia sozinha. Acresce o moralismo que a notícia da morte da mãe de Jean, imediatamente antes das chaves rodarem na fechadura, imprime à cena, na medida em que sai beneficiada, novamente, a "pureza" de Eddie, o qual, perante a gravidade do assunto, como que se "esquece" da pulsão sexual.
A segunda leitura, eventualmente mais ousada mas nem por isso infundada, é a que, jogando com os mesmos dados (intenção de entrar sabendo que a mãe de Jean está em casa vs. desistência de o fazer sabendo que ambos estão sozinhos), vê na confiança exterior de Eddie o reflexo de uma profunda falta de confiança interior e - é aqui que queremos chegar – sexual. Durante todo o filme, não há, salvo erro, uma só cena em que Eddie beije (e só estamos a falar disto mesmo, beijar) uma mulher, que abrace uma mulher para além do mero companheirismo. Pelo contrário, Eddie, não obstante a sua inegável masculinidade e virilidade (os socos a torto e a direito, a pose de gangster), apresenta-se, de um ponto de vista relacional e objectivamente físico, perfeitamente assexuado, o que poderá mesmo levar a abrir novo capítulo nas suposições, a saber, o de uma eventual homossexualidade reprimida. Aparência que sai reforçada com o que de virginal Eddie põe em pormenores tão simbólicos como o de, durante praticamente todo o filme (até à sua "queda"), beber leite (e não álcool). Deste modo de ver, a recusa em aceder ao convite de Jean evidencia a referida falta de confiança, sobretudo sexual, em levar as coisas "até ao fim", em corresponder na hora "H"  como não pensar, então, no soldado, como Eddie, impotente de Fiesta, de Hemingway?

Aliás, a relação de Eddie com Panama (mulher que dele diz, mais do que uma vez, ser do "seu tipo", com o que o filme se abalança no tema da luta de classes), mulher com quem acaba por "ficar", não é nunca de tipo amoroso, muito menos sexual; pelo contrário, é sempre uma "amiga", uma "comparsa", que Eddie vê – que nos dá a ver – em Panama. A bem dizer, mesmo no amor que vota a Jean, Eddie nunca parece apaixonado no sentido carnal que ao amor está irremediavelmente associado; diversamente, Eddie parece, sim, apaixonado por uma imagem, por uma ideia de amor, burguês com certeza: uma casa, uma mulher "doméstica" (e domesticada) e os filhos brincando no front yard. Voltando ao início e ao comboio, é precisamente com este ideário que Eddie sonha alto, em conversa com Jean, na viagem, quando lhe diz supor que ela goste de fazer bolos nas horas vagas, ficar no jardim ou costurar. É esta ideia de amor que, afinal, gente "do tipo" de Jean (e de Lloyd, com quem casará) vive (ou fabrica, como imagens/ilusões que se fabricam…), mas de que Eddie ou Panama estão arredados (em nova intromissão da questão de classe).


segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

6 anos


"Like It Is", álbum The Blue Yusef Lateef (1968). Yusef Lateef.

Ao que tudo indica, este blog completa hoje 6 anos. Com 6 anos, o meu mundo era pequeno, como era o do Henry Miller; com 6 anos, este blog é um mundo enorme, para mim, que nele escrevo o que me apetece sem ter que dar troco a ninguém. Nem - é a parte mais saborosa - a mim próprio. Há coisas escritas (ou imagens, músicas, pedaços de cinema) do passado a que volto frequentemente; há outras que nem lhes toco, que estremeço só de ver de raspão (a do Henry Miller está no meio dos dois tipos). Sozinho, mais ou menos acompanhado (visitantes?, há-os?, quem são?, o que pensam?, o que ouvem?, não sei, nunca soube), aqui - como nos livros, no cinema, na música - encontro sempre a calma que não encontro nas "redes sociais", nos telemóveis, nos chats, nas caixas de comentários de jornais e sites, na avalanche opinativa descerebrada e prepotente que "acha" sempre algo sobre alguma coisa, sem tempo nem predisposição para apreciar e - hélas! - pensar. Pensar - às vezes, para ficar calado. Agora, chega de choradinhos (começo a pensar que a revolta juvenil da adolescência volta ciclicamente sob outras formas) e comemoremos como deve ser. Like it is.



a máquina do tempo



The Roaring Twenties (1939), Raoul Walsh.

João Mário Grilo, "The Roaring Twenties: da retrospectiva à teoria", in  À Pala de Walsh (versão adaptada), Maio 2013:

"Walsh serve-se, aqui, do táxi como uma curiosa máquina do tempo, apoiando-se na dicotomia interior-exterior. Jean está sentada no banco de trás, recortando-se no limite da janela traseira do automóvel (através da qual vemos o exterior) e reflectindo-se, simultaneamente, no retrovisor de Eddie. O que isto quer dizer é que Eddie só pode ver Jean reflectida no isolamento emoldurado do retrovisor, olhando, portanto, para trás, enquanto ela só o vê, de costas, olhando para a frente. Esta oposição é, de resto, magistralmente exposta no plano em que o reflexo de Jean no retrovisor ocupa a metade superior do enquadramento , enquanto a metade inferior é preenchida pela cidade em movimento, olhada através do pára-brisas do carro. O plano é curto, mas inscreve na topologia da imagem o logro fatal de Eddie, assaltado por uma verdadeira miragem temporal, que não reproduz – e este pormenor é interessante e decisivo – uma qualquer subjectividade psicológica (uma visão), mas o modo realmente físico (óptico) como o personagem se inscreve no espaço e (porque é essa colagem que o filme nunca deixa de promover) se posiciona no tempo: o que vemos que Eddie vê é, portanto, exactamente, tudo aquilo que ele (não) pode (deixar de) ver.

A retórica infernal desta sequência faz com que o espectador acabe por ter um acesso privilegiado ao único dos pontos de vista que os personagens não podem ter: o do exterior da viatura, onde a toma de vistas justifica, narrativamente, o dispositivo. À excepção desta tomada de vistas – que nos diz que tudo aquilo se passa dentro de um carro em andamento -, Eddie e Jean são personagens que, de facto, experimentam a história de maneiras diferentes e opostas, lembrando muito o que Claudel dizia das viagens de comboio: o passageiro que vai sentado no sentido da marcha olha para o futuro, enquanto o que lhe está à frente é forçado a olhar para o passado. Que importa pois, que Jean diga a Eddie que está casada com Lloyd, que têm um filho de quatro anos, que Lloyd faz uma carreira brilhante de advogado, no gabinete do procurador, que o táxi se dirija para o elegante subúrbio de Forest Hill, onde o casal mora? Que importa tudo isso, qua o real se apresente em cada palavra, se Jean ali está, retrovisionada num ecrã de perdição, como a mais perfeitas das imagens do passado e a mais cristalina mise en scène das imagens passadas".

sábado, 8 de fevereiro de 2014

Like Marvin singing "I Heard It Through the Gravepine"




"At The Same Time", álbum TSOL (2010). Shad.

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

kendrick lamar


"Cut You Off (To Grow Closer)", mixtape O(verly) D(edicated) (2010). Kendrick Lamar.

Esqueçam a - ou o - Primavera; é o Verão que, com o Kendrick Lamar (olha aqui, ali e mais acolá), chegará, mais cedo, ao Porto. 5 de Junho. 

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

bibliografia essencial



Salò ou os 120 Dias de Sodoma (1975). Pier Paolo Pasolini.

cocaine castle




"Cocaine Castle", álbum Trap Lord (2013). A$AP Ferg.

terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

propriedades da chuva

Queixamos-nos da chuva e pedimos sol sem nos lembrarmos que a primeira é capaz de interromper o caminho de regresso de duas pessoas a casa e obrigá-las a abrigarem-se numa soleira, debaixo de um varandim velho, na entrada de um prédio com madeira a descascar. Nesse momento, os cabelos já se molharam (as pontas, sobretudo), os casacos grossos que vestem estão húmidos e ambos respiram ofegantemente, as maçãs dos rostos rosadas. Olharão para a rua como quem olha um mundo exterior que entretanto se formou, falsamente averiguando as intermitências da chuva. Depois talvez sorriam e.

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

if you could see me now



"If You Could See Me Now", álbum Cry!-Tender (1959). Yusef Lateef.

domingo, 2 de fevereiro de 2014

mulheres difíceis

Tudo se complica quando procuramos nas mulheres aquilo que procuramos num filme: o que não é dito, o que fica nas entrelinhas, o que não está à superfície, o que não é imediatamente visível ou perceptível, o que suscita mistério e dúvida, enfim, aquilo que só o tempo - os dias ou as semanas, já depois de termos visto o filme, em que nele continuamos a matutar - ajudará, ainda que não completamente, a desvelar. Nunca acreditei verdadeiramente em filmes "difíceis" (ao menos neste sentido, i.e., no da inteligibilidade dos filmes, desde logo porque estou com aqueles que nem tudo é para ser explicado ou mesmo compreendido), mas, sendo assim, nesse trajecto do cinema para a vida, fará também sentido dizer que não existem mulheres... "difíceis"? E se faz, por que razão, então, aquelas três palavras iniciais?

sábado, 1 de fevereiro de 2014

before the summer broke



"Before the Summer Broke", álbum Gotham Down Deluxe (2013). Jean Grae.

can't remember to forget Bergman