Tournée (2010), Mathieu Amalric.
Depois da Amizade (podem ver o meu contributo aqui), o Caminho Largo renovou-me o convite para participar numa rubrica onde a Coragem foi definida como caleidoscópio temático de uma selecção de 3 filmes e um realizador. As minhas escolhas, essas, encontram-nas ali (clicar).
Nem sempre este tipo de escolhas merece "justificações", muito menos quando o tema é tão amplo - demasiado, em minha modesta opinião - como no caso presente. Perante a amplitude da coisa, decidi ser pragmático e optar por três filmes com muitos (mesmo muitos) pontos de contacto e, mais importante, onde os corajosos (homens, nos três casos) se - como dizem os brasileiros - "viram" (no sentido de superar as adversidades da vida) no mesmo tipo de espaço (clubes nocturnos, cabarets) e rodeados das mesmas "companhias" (mulheres, álcool, cigarros e cobradores de dívidas). Mais concretamente, sobre os três filmes que escolhi, reproduzo, abaixo, o que, há uns anos, escrevi sobre dois deles (Ferrara e Amalric) e o porquê de os considerar um excelente ilustrativo do tema proposto (não é por acaso que a palavra "coragem" expressamente lá aparece...), importando acrescentar que essa mesma explicação se estende, na plenitude, ao filme do Cassavetes.
Quanto ao realizador eleito, que dizer? Pensei em Godard, Antonioni, no próprio Cassavetes, nos japoneses, no César Monteiro, e mais uns quantos. Acabei por me deter no Pasolini, exemplo da coragem feita homem, porque transversal: no plano pessoal (afirmação, sem rodeios, da sua homossexualidade, num tempo em que isso ainda era uma "excentricidade" de circo), no plano político (comunista numa Itália pós-fascista, "esquerdisticamente" fragmentada e pré-Berlusconi, com as perseguições que se sabem, culminadas na morte às mãos da direita), no plano estético (um desbravador das fronteiras entre literatura, poesia, cinema, teatro) e, last but no least, no plano cinematográfico (artisticamente selvagem e desprendido de cinematografias "de programa", como Mamma Romma, a sua primeira longa, logo indicia pelo descolamento sofisticado em relação ao neo-realismo). Enfim, tudo aspectos que Saló ou os 120 dias de Sodoma, que vi recentemente, condensa numa afirmação de singularidade e iconoclastia.
Há um mundo de semelhanças entre o Ray Ruby (Willem Dafoe) de Go Go Tales (2007, Abel Ferrara) e o Joachim Zend (Mathieu Amalric) de Tournée (2010, Mathieu Amalric). De um lado, a mesma paixão, irreverência e obstinação. O optimismo inquebrantável, contra tudo e contra todos (the show must go on), que mexe em tudo por que passa, mesmo quando a tragédia parece estar iminente. Por outro lado, a mesma infantilidade (ambos sonhadores e indomáveis - síndrome "Peter Pan") e solidão (Ray dormindo sozinho no seu escritório enquanto mil coisas acontecem no seu clube; Joachim viajando sozinho de carro pela noite dentro enquanto a sua companhia de new burlesque actua). E, porque não dizê-lo, a mesma decadência e sensação de nostalgia pelos good old days, não só no que ao dinheiro propriamente dito diz respeito (dois businessman falidos), mas também no que toca ao seu percurso dentro do mundo do espectáculo (o clube Ray's Paradise já viveu melhores dias e Joachim, por seu turno, era um tipo famoso em França antes de se chatear com a indústria e se exilar nos EUA).
Mas, ainda mais marcante, é a mesma fragilidade emocional e necessidade de se agarrarem aos seus mais próximos, que não são, note-se, num caso e noutro, a família (como seria habitual), mas sim as pessoas com quem trabalham diariamente. Ray trata as suas go go girls quase como filhas, referindo-se ainda numerosas vezes ao pessoal do Ray's Paradise como uma "grande família", onde todos olham por todos (veja-se a cena excelente em que uma striper lhe diz que está grávida ou aquela outra em que Ray canta sozinho em palco - a canção parece ser, na verdade, dirigida ao clube). Joachim, por sua vez, parece só estar bem quando rodeado das suas strippers, procurando fazer tudo para que se sintam bem, ainda que por isso durma pouco ou nada.
Flagrante, também, o espaço em que ambas as personagens se movem: o mundo do espectáculo e, mais concretamente, o mundo do striptease, das mulheres, da carne e da sensualidade. É neste mundo que ambas as personagens se encontram permanentemente à beira do colapso, do fim, embora haja sempre algo que as mantém à tona. Apetece acreditar que esse "algo" não é fruto do acaso ou da fortuna, mas como que uma recompensa pela coragem e determinação de dois seres vertiginosos que correm todos os riscos por amor à arte. E por aqui se vê o grito pela independência - no cinema, mas também na arte, em geral - que é comum a crítica apontar a Amalric e Ferrara por estes dois filmes.