Milagre
no Rio Hudson (2016), Clint Eastwood ★★
A maior
virtude do último filme de Eastwood acaba por ser, paradoxal e perversamente, o
seu mais evidente defeito. Para alguém que, como nós, foi ver o filme sem fazer
a mínima ideia do que ele tratava (muito menos dos factos verídicos em que se baseia),
a virtude de que falámos assenta no facto de Eastwood (parecer) deixar a porta sempre
aberta, no modo contido mas simultaneamente sugestivo como filma (aqueles
planos gerais, silenciosos e misteriosos q.b.), para algo pelo qual nunca
chega, afinal, a interessar-se (e é pena, tamanho é o desempenho que Hanks
arranca): o lado interior de Sully, os fantasmas e angústias que se advinham e
que uma ou outra pista indiciam (as dívidas, a distância da família, a solidão).
Durante grande parte do filme, o nome de Andreas Lubitz, o piloto que se
suicidou despenhando um avião em plenos Alpes franceses, ocorreu-nos inúmeras
vezes à memória (insista-se: não fazíamos ideia do argumento), e a própria
interrogação (silenciosa, novamente) de Sully ao longo do filme sobre o que é
isso de ser um “herói” nos fez levar a crer que aquele acto (a aterragem de
urgência no rio) bem poderia não ser o que pareceu. Mas não: Eastwood
dispensa-se de qualquer gesto complexo (algo que, mesmo timidamente, ainda
chegou a ensaiar em Sniper Americano,
outro laudo ao espírito heróico americano), arreda-se de qualquer
problematização “existencial”, preferindo ficar-se, muito pacificamente
(banalmente), pela reconstituição fáctica do “dia D” (e só os mais aguerridos
defensores de Eastwood conseguirão ver qualidades nas fastidiosas cenas da
repetição do trajecto do avião), filmando mesmo já no fim, em registo quase de
programa “da tarde”, um reencontro entre os “verdadeiros sobreviventes”. “Preguiça”
é a melhor palavra que nos ocorre para descrever tudo isto.
Cartas
da Guerra (2016), Ivo M. Ferreira ★★★
Não
é novidade para ninguém que é ainda escassa a filmografia portuguesa (autoral
ou não) produzida sobre o nosso passado colonial (os títulos mais importantes
ainda continuarão a ser Um Adeus Português, Non, ou a Vã Glória de Mandar, Os Imortais ou A Costa dos Murmúrios), sem
dúvida por opção dos realizadores e por constrangimentos de produção, mas
também porque, como vem sendo sublinhado por muitos historiadores, o próprio
país tem ainda dificuldade em olhar-se ao espelho e revisitar, sem complexos ou receios de represálias, esse período da nossa
história colectiva. Entretanto, Miguel Gomes surgiu, fulgurante, brilhante, com Tabu (2012); mais recentemente, pelo contrário, em Posto-Avançado do Progresso (2016), Hugo Vieira da Silva, pese embora as boas intenções, não conseguiu
convencer na adaptação da
obra de Joseph Conrad ao contexto colonial português do século XIX, desde logo
pelo desaproveitamento do material visual e fílmico à sua disposição, nunca
tirando partido do capital natural (e cinematográfico, et pour cause) da
selva africana. Ora, isso é algo que manifestamente não acontece no filme
de Ivo M. Ferreira, visualmente quase irrepreensível, seja no apuramento
altamente contrastante do preto-e-branco (admirável trabalho de fotografia de
João Ribeiro), na iluminação ou naqueles poéticos planos gerais e de conjunto
da paisagem angolana. Há momentos realmente brilhantes, como as cenas filmadas
no navio saído para Angola (aquele God’s
eye view shot sobre o médico
a dormitar, os concertos para os recrutas), nas quais o realizador português
denota uma noção muito precisa da (elegante) mise
en scène que pretende. Sendo
um filme “sobre” a guerra colonial, teria sempre que ser, necessariamente, um
filme “político”, embora seja no cruzamento da “História” com a história
individual e emocional de um médico (Lobo Antunes, então ainda não publicado)
destacado para Angola que o filme – e a vida – se faz. A este respeito, um dos
principais atributos do filme – a matéria textual das cartas de Lobo
Antunes – acaba por ser, paradoxalmente, um dos pontos fracos mais
evidentes, não pelo seu conteúdo, naturalmente (embora as enumeração
prolíficas, se bem que literariamente valiosas, sejam por vezes
fastidiosas, algo que bem poderia ter sido adaptado para o filme), mas pelo
recurso abusivo à leitura em off do texto em detrimento do foco na
acção propriamente dita. Com a agravante de, por ricochete, a presença de
Margarida Vila-Nova – que não a sua voz, magnífica na leitura, nada fácil, das
cartas apaixonadas e angustiadas em doses iguais – se tornar decorativa e despicienda,
culpa de quem a dirige e não da própria (nem mesmo como “fantasma”, como
fantasia ou perturbação onírica funciona). É esse carácter exacerbadamente
epistolar que, nos piores momentos (i.e., enquanto a leitura do texto dura e
dura sem alternar com a acção em Angola), retira gravidade e esplendor ao
filme, ao que não ajuda a câmara sempre em movimento, o que, por vezes,
confere um certo tom ornamental e secundário à imagem por oposição ao
omnipresente “som-texto”. Nada disto, porém, impede o filme de Ivo M. Ferreira de ser um digno e meritório objecto
cinematográfico, orgulhosamente autoral, e um importante contributo para a
preservação da nossa memória colectiva.