No Artes Entre As Letras desta semana, escrevo sobre o curioso A Missão e o documentário sobre David Lynch. Bons filmes!
***
A
Missão (2016),
Walter Hill ★★★
A
certa altura, quando um(a) fragilizado(a) Frank Kitchen (Michelle Rodriguez)
pergunta a Johnnie, que mal o conhece, se pode ficar uns tempos em sua casa,
esta responde-lhe: “Of course… We’re fuck buddies!”; ouvem-se risos de
escárnio na sala e a implausibilidade desta súbita hospitalidade parece fazer o
filme resvalar para o ridículo. Mas quem ri por último, ri melhor: largos
minutos depois, quando o argumento se desenvolve, o espectador percebe que foi
inteligentemente manipulado, não através de uma grande “mentira” ou surpresa,
mas por ter sido ultrapassado pela subtileza com que Hill desfia a narrativa.
Só por isto, pelo facto de manter o espectador em sentido e, sobretudo, por não
o tomar por mentecapto e lhe exigir cérebro, o último filme do americano, dos
mais objectos mais esquizóides que tivemos oportunidade de ver em sala nos
últimos tempos, constitui, desde logo, motivo de interesse.
Assentando no
género clássico de “thriller de vingança”, A Missão dá igualmente
ares de ficção científica filosofante (na questão da criação e da mutação
humanas, do bem e do mal ou, ainda, da desviância comportamental como algo
“inato”, no que não deixa de respirar tópicos criminológicos, logo políticos,
fundos e actuais) e, importante não menosprezar, de comédia, como se o filme nunca
se levasse demasiado a sério. Apesar de Rodriguez nunca conseguir sair do overacting
(e não é apenas neste filme, antes um problema crónico cristalizado nos
"Velocidades Furiosas" que protagoniza), a sua personagem cativa pelo
modo como está a meio caminho entre a figura de B.D. e a de videojogo (não é
por acaso que ela se “transforma”, que “muda de capa"), quase um
“super-vilão” (para desenjoar dos “super-heróis” com que Hollywood tem
intoxicado as salas de cinema) que se vai movendo de arma automática em cada
mão. Falámos atrás na dimensão política, algo ainda mais patente no modo como a
questão de género (masculinidade/virilidade) surge a baralhar as contas (ou
seja, a nossa percepção cultural e simbólica) e a jogar ironicamente quer com a
androgenia de Rodriguez, quer – et pour cause – com as próprias
personagens que esta interpreta noutros filmes (sempre muito masculinizadas).
Como num western – de que Hill, um veterano a filmar desde os anos
70, é admirador –, as
personagens movem-se num espaço com códigos de conduta próprios, onde as normas
sociais e morais estão suspensas, tópico de que, por outros caminhos ainda, o
filme também se aproxima através da personagem de Sigourney Weaver, a cirurgiã
que, citando Poe, define a arte como um domínio estranho a considerações
políticas e morais para justificar o seu trabalho como uma obra artística (e,
no caso da “cirurgia estética” que inflige a Rodriguez, há aqui ecos do
"crime como obra de arte" propalado pelos célebres
"estetas" de A Corda, de Hitchcock, não por acaso um filme em
que a sexualidade das personagens principais também é problematizada). A B.D.
está igualmente latente no próprio dispositivo visual de
"apresentação das personagens" (os freeze frames que viram
"ilustrações", a lembrar Sin City), talvez o elemento mais
dispensável, juntamente com grande parte da banda sonora (demasiado presente e
de mau gosto), do filme, mas que nem por isso lhe retira interesse (e
perversidade) e impede de ser uma bem-vinda lufada de ar fresco às salas
(sobretudo agora, ou não fosse precisamente o Verão o período por excelência
dos “super-heróis”).
David Lynch:
The Art Life (2016), ONeergaard-Holm,
Nguyen, Barnes ★★
Não
sendo fãs incondicionais da obra de Lynch, mas simpatizando com muito dos seus
filmes e temas (e não tendo de todo, portanto, qualquer alergia anti-Lynch),
quiçá estaremos em posição privilegiada (i.é, "emocionalmente
imparcial", tanto quanto a "imparcialidade" existe nestas
coisas) para avaliar um documentário que vive, sobretudo (e em demasia), da aura
misteriosa e da gravidade que reserva ao seu objecto central, visível no próprio
dispositivo solene montado: Lynch sentado, a fumar ininterruptamente (o fumo a
forçar toda uma atmosfera "pensativa") e um microfone para onde vai
debitando memórias ou ideias, das mais interessantes (a mulher nua ensanguentada,
o vizinho Smith) às mais irrisórias ou irrelevantes.
Incidindo sobre a infância
de Lynch até ao momento em que ganha uma bolsa para filmar Eraserhead
(poderosa a forma como, salvo erro na última frase que se lhe ouve, explica,
sem grandes desenvolvimentos mas com emoção, o que o cativou na personagem
interpretada por Henry Spencer), é certo que o filme não retira fascínio à figura
de Lynch; diferente disso, porém, é o que se consegue fazer com isso (com esse
fascínio), e o filme, certamente pela própria reserva do cineasta, pouco
desenvolve sobre a sua "art life", contra o que o título anuncia
(justapor algumas frases soltas com imagens de Lynch a pintar ou de quadros seus
fica curto).
Nada contra a discrição, mas um documentário deste género, para
valer como objecto "observacional", exige mais algum tipo de
escavação – e evidentemente que não eram "revelações" aquilo que aqui
se pedia, bastando constatar, porém, que nenhum tipo de reflexão ou
problematização de determinados aspectos artísticos é levado a cabo, tudo se
ficando pelo tom monocórdico com que Lynch vai guiando impassivelmente o filme,
pouco dedo "ordenador" e criativo sobrando para os realizadores, que
parecem demasiado deleitados com o autor da recém-retomada série Twin Peaks. Em resumo: um filme
simpático, arrumado mas inofensivo, que por certo agradará aos mais aficionados
lynchianos precisamente pelo que apontámos acima: porque confirma (o mito, a
aura) sem perturbar (exactamente o contrário do que os filmes do próprio Lynch
sempre foram…).