Decorreram ontem as primeiras Conversas À Pala no Porto, no Teatro do Campo Alegre. Foi um momento de debate e convívio em torno do cinema de Satyajit Ray e das linhas de força, cinematográficas e não só, que ele convoca: a Índia, o exotismo, o "realismo" (e o neorealismo italiano, por inerência), o melodrama, a "universalidade" e a "particularidade", etc..
Muito em breve, o video da Conversa estará disponível on-line. Até lá, aproveito para dar conta da última Sopa de Planos, na qual participei com um apontamento sobre O Deserto Vermelho, do Mestre Antonioni. Fumem tudo aqui (clicar).
Il deserto rosso (O Deserto Vermelho, 1964) é um filme, em si mesmo, a transbordar de fumo de uma ponta à outra (e, quando não é fumo, é… nevoeiro), um pensativo cigarro de Antonioni sobre a vida moderna mas, também, sobre o próprio cinema (sobretudo a partir da cor enquanto recurso fílmico). Curiosamente, um filme fumarento em que, ao contrário de tantos outros de Antonioni, o fumo provém não tanto dos cigarros como dessas fábricas que, parafraseando Antonioni, também podem ser belas. O fumo do progresso, com certeza, mas também o fumo etéreo que dissolve/no qual se dissolve Monica Vitti, que a aliena da realidade – não por acaso a ouvimos a dizer, não sem o seu quê de mórbido, que “C’è qualcosa di terribile nella realtà, e io non so cosa sia” (tradução livre: “Há qualquer coisa de terrível na realidade, mas eu não sei o que é”). Naquele que foi o primeiro filme a cores (e se muitas delas foram pintadas artificialmente, quem pode dizer, com segurança, que o que vemos no ecrã não são já as cores induzidas pela distorção mental de Vitti?) do Mestre italiano, o fumo ora contrasta (como uma reminiscência do preto e branco) ora se harmoniza (como neste plano) com as cores e respectivas temperaturas da Ravenna industrial por que Vitti, como em todos os filmes da “Trilogia do Silêncio”, deambula insatisfeita, entediada, neurótica. Para um realizador que fez da relação entre a paisagem e a psicologia dos personagens uma das traves-mestras da sua arte, o fumo é o primeiríssimo indício do tal mundo novo (o do progresso, da indústria, da tecnologia), da tal nova natureza ou nova harmonia (como escreveu Manuel S. Fonseca n’As Folhas da Cinemateca Portuguesa) que Vitti (Antonioni?) encara, nisso vendo alguns uma mera necessidade de adaptação (caso do crítico que citámos), outros uma autêntica opressão visualmente representada através do “esmagamento” dos personagens pelos colossais edifícios e máquinas fabris, bandeiras, por sua vez, de todo um regime de produção metódico, frio e utilitarista. Troque-se “produção” por “existência” e eis aquilo para que Antonioni chama (somos tentados a escrever “chamou”…) a nossa atenção.